O escritor e jornalista Laurentino Gomes conta sentir um misto de felicidade e angústia a cada publicação de um volume de sua trilogia Escravidão, em que analisa o profundo e definitivo impacto de tal prática na formação do Brasil, especialmente da atual sociedade. “Quando saiu o primeiro volume, em 2019, o assunto dominante era uma criança negra que foi chicoteada. O segundo foi lançado um ano depois, justamente quando um homem negro foi espancado até a morte em um supermercado em Porto Alegre. E agora, em 2022, quando o terceiro volume estava na gráfica, outro homem, também negro, foi asfixiado até a morte em um carro da Polícia Rodoviária Federal”, enumera ele ao Estadão. “Ou seja, continuamos vivendo sob um genocídio silencioso, não declarado, como acontecia no século 18.”

Escravidão – Volume 3 encerra uma detalhada pesquisa realizada em viagens por doze países e três continentes. Com a trilogia, Laurentino cobre desde o primeiro leilão de cativos africanos em Portugal, em 1444, até a assinatura da Lei Áurea de 13 de maio de 1888, que determinava oficialmente o fim da escravidão no Brasil. Ao longo desses quatro séculos, a prática invadiu todas as atividades e classes sociais do País, com praticamente todos os habitantes (mesmo negros libertos) sendo ou desejando ser donos de escravos.

“É o que ajuda a explicar como o racismo se mantém como traço característico da sociedade brasileira, um racismo que finge que é brando ou que não existe”, comenta o escritor. “Trata-se de um racismo estrutural, cultural, que se expressa na desigual distribuição das moradias pelas cidades, na linguagem, na falta de oportunidade para pessoas negras.”

GENOCÍDIO

É o que exemplifica o processo sistemático de genocídio ainda em vigor. Em sua pesquisa, Laurentino descobriu o Brasil como o maior país escravista da América, com quase 5 milhões de cativos africanos, ou seja, 40% do total dos escravizados que embarcaram da África para a América, estimado em 12,5 milhões. Além disso, foi a nação que mais tempo demorou para acabar com o tráfico negreiro, determinada pela Lei Eusébio de Queirós, em 1850, e ainda o último a acabar com a própria escravidão, em 1888. “O Brasil foi construído por escravos em todos os ciclos econômicos, passando pelo açúcar, ouro, diamante, café”, afirma.

No terceiro volume da trilogia, que terá diversos lançamentos ao longo da Bienal do Livro de São Paulo (como no sábado, 2, às 16h), Laurentino Gomes detalha o momento crucial da escravidão no Brasil, desde a proclamação da Independência, em 1822, até a assinatura da Lei Áurea pela princesa Isabel. Período marcado por três fases, iniciando pelo processo de ilegalidade do tráfico, entre 1822 e 1850, seguindo pelo contínuo deslocamento da população escravizada do Nordeste para a região cafeeira do Rio e São Paulo, até chegar à campanha pela abolição.

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“A campanha abolicionista, encampada por Joaquim Nabuco, Luiz Gama, André Rebouças e José do Patrocínio, entre outros, foi a mais importante ocorrida no Brasil no século 19”, observa o escritor. “Eles defendiam a realização de duas abolições: uma que extinguisse a comercialização de pessoas, o que ocorreu com a Lei Áurea, e a segunda, que seria decisiva, era incorporar os ex-escravos na sociedade brasileira como cidadãos, conferindo terra, emprego e educação, o que não ocorreu.”

Privilégios

Segundo ele, o pacto entre a monarquia e a oligarquia dos coronéis, principais proprietários de terra, manteve a estrutura social porque isso significaria abrir mão de privilégios e riquezas, além de redirecionar recursos do Estado para pessoas que não tinham oportunidade. “A situação continuou mesmo com a proclamação da República, em 1889, ou seja, o Brasil era como um edifício cujo principal alicerce era a escravidão: sem essa base, a construção ameaçava desabar. Assim, o País abandonou sua população afrodescendente à própria sorte.”

E, ao contrário de outros países cuja segregação era determinada por lei (como nos Estados Unidos e na África do Sul, por exemplo), no Brasil é tão estruturado que dispensa qualquer apoio legal. “Vivemos sob o mito da democracia racial. Felizmente, há hoje mais projetos de resistência e muitos brasileiros revelam-se chocados com nossa sociedade.”

O tema é tão importante que Laurentino considera ter aprendido mais com essa trilogia do que com a anterior, formada pelos livros 1808,1822 e 1889. “A primeira trilogia me ajudou a entender como foi a construção do estado brasileiro durante o século 19 depois de se separar de Portugal. Já a escravidão é o assunto mais importante da história do País. O que fomos no passado, o que somos hoje e o que gostaríamos de ser no futuro tem a ver com a escravidão.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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